A Peça de Teatro
AVISO INICIAL
(Enquanto o público entra e se instala na sala está a tocar a música Eternal dos Evanescence... Quando todos estão já no interior da sala essa música pára e começa a tocar a música Stuck in the middle with you e a pessoa encarregue do aviso entra super à vontade a falar ao telefone uma parvoíce qualquer, desliga e começa)
Boa noite.
Sejam bem vindos à sala...
Desde já agradecemos a vossa presença aqui, esta noite. Esperamos poder proporcionar-vos uma hora interessante.
A peça vai já ter início assim que eu me cale... Se eu nunca mais me calar peçam-me que o faça mas por favor sejam delicados...
Deixem-me pedir-vos que durante a peça não se levantem dos vossos lugares, não recebam chamadas telefónicas e por isso também vos peço que desliguem os vossos telemóveis. Tenho também que vos pedir para não fumarem nem se porem para aí a falar uns com os outros... Tá bem?
Ah... E agora a sério... Não arranquem os bancos à saída, não atirem coisas aos actores, não comam nem bebam dentro da sala e por favor não façam como algumas pessoas já têm feito que é porem-se a trincar e morder a pessoa que está sentada do vosso lado.
Não interrompam a peça por razão nenhuma nem mesmo para corrigirem um erro grave qualquer, tipo um chuto na gramática portuguesa... As coisas estão feitas mesmo para serem assim e até uma ou outra estupidez que é normal detectarem e que vos possa incomodar deve ser pura e simplesmente suportada... Ok?
Já sabem, não andem para aí a trocar de lugares, não se ponham a saltar nas cadeira ou a passar bilhetinhos uns aos outros, não alimentem os actores mesmo que eles pareçam estar a precisar e por favor não venham aqui para o palco fazer uma cena qualquer que vos possa ter passado pela cabeça e que achem interessante partilharem com os outros.
Atenção que eu estou com os olhos em cima de vocês e vou estar sempre alerta por isso não cuspam para o chão nem se ponham a colar pastilhas ou macacos nos vossos assentos ou nos assentos dos outros.
Vá portem-se bem e aguentem-se aí que isto não custa nada.
Ah e antes de me ir embora deixem-me dizer que eu não faço parte do elenco e eu sei que vocês queriam ver-me aqui com os actores mas eu estou aqui só pelo aviso e as recomendações... O nome da peça que vão ver é Verdade ou Consequência... Agora vou-me embora e como já não volto se quiserem podem bater palmas para mim...
Isso... Assim está bom... Ok já chega, obrigado... Vá Agora calou. Não quero nem mais um piu.
(Senta-se num lugar disponível)
APRESENTAÇÃO
(Entra a Luísa Amaro – LA)
LA.- Iniciativa, autonomia, empenhamento, comportamento, métodos, conhecimentos...
Sempre, ou quase sempre, tudo A’s.
Sabem... Acho que fui enganada.
Eu achava e pensava exactamente aquilo que era suposto achar e pensar...
Era o que eles diziam de mim... Era o que as notas que eles me davam diziam sobre mim... Era o que diziam à minha mãe, o que diziam ao meu pai... Os professores... Era o que os professores diziam nas reuniões que davam no final de cada período...
Que futuro!
Vou repetir para que não vos possa escapar já: Iniciativa, autonomia, empenhamento, comportamento, métodos, conhecimento... A, A, A, A, A, A...
Estava a preparar-me... A preparar para a promessa deles...
Mas que mentira, que treta... Epá caramba! Que droga!
Eu acreditei em tudo... Achava que sim e pensava que sim... Excepto quando pensava que sim mas achava que não... O que acontecia uma e outra vez... Quando me gozavam e sempre que não era escolhida...
Quando... Vou arrepender-me de dizer isto... Quando convidava a turma inteira e ainda mais umas amigas das minhas colegas que tinham outras amigas... Todos eram convidados para a minha festa... Recebiam um convite elaborado e tudo o mais, enviado com grande antecedência para casa deles... E tudo era organizado até ao mais ínfimo pormenor... E a melhor dessas festas contou apenas comigo e mais seis colegas minhas... Mas até para isso foi preciso que na noite anterior a minha mãe, sem que eu soubesse, tenha ligado a pedir as confirmações a todas as pessoas convidadas... E quando eu digo pedir quero dizer por favor...
A minha mãe... Oh mãe... Desculpa-me... Eu amo-te tanto...
( A Luísa saí e entra a Cissa Almeida – CA)
CA. - Olá! Tudo bem?
Eu... Sou sempre a primeira. Nem me esforço, é quase natural...
É que até gostava de pensar que é porque sou ou tenho uma personalidade muito sólida e confiante...
As coisas simplesmente correm-me bem e como quando olho em meu redor percebo que há quem não tenha a mesma sorte, às vezes até chego a sentir-me um pouco culpada... Mas não o suficiente.
Para mim tem sido fácil e nem preciso de fazer planos... Quero, desejo, espero... E acontece mas não me sinto satisfeita... Ainda não.
Não sou mimada porque sei reconhecer... Sou agradecida e tento retribuir.
É tão bom quando ficamos doentes e no mesmo dia em que faltamos recebemos logo uma série de telefonemas com perguntas de preocupação e palavras de carinho...
Sentem a minha falta quando falto e se faço falta é porque é diferente estar lá ou não estar...
E o melhor de tudo é que tenho a certeza que a minha presença aquece enquanto a minha ausência arrefece...
Não me lembro das coisas terem sido de outra forma... Acho que foi sempre assim.
Nos dias de hoje até parece estranho dizer isto mas comigo está tudo bem... Não me falta nada.
A vida também me provoca às vezes... Mas é um jogo giro, amigável, um jogo que eu gosto de jogar...
Estou de bem com a vida e a vida está de bem comigo.
Eu sei o que estão a pensar... É óbvio... Como dizia o velho sábio ao jovem ingénuo... Acreditas mesmo na felicidade? Então mostra-me uma pessoa feliz e eu mostrar-te-ei um acidente prestes a acontecer...
Pois bem... Tenho novidades para vocês... O velho sábio morreu há dias sozinho na sua casota junto com os seus livros cheios de letras, folhas e poeira... Mas morreu sem saber que entretanto o jovem ingénuo apaixonou-se, casou e é feliz...
Posso ser tola... Posso ser o que quiserem achar que sou mas vou continuar a pensar que não podia estar melhor enquanto me sentir como me sinto agora, feliz...
(Cissa sai e ao som da música Sympathy for the Devil entra Artur Nevelo – AN... Chapéu de cartola, capa, calças, laço e sapatos negros, colete cinzento ou beje, camisa e luvas brancas... Tira as luvas, acende um cigarro e passeia por momentos no palco, dá umas passas enquanto acende e apaga o isqueiro, depois guarda o isqueiro e apaga o cigarro numa das suas mãos)
AN. - Ah... Sim dói... Mas quase não a sinto... A dor.
Na verdade quase não sinto nada mas a dor ainda a sinto... Cada vez menos, mas ainda...
Estou a morrer novamente... Mas agora aos poucos...
Alguém disse enquanto se despedia que é melhor se nos extinguirmos de repente, como uma chama que é afogada e logo se apaga do que irmos cedendo aos poucos, sendo abafados... Como se nos faltasse o ar para respirar.
Aos poucos a chama vai ficando cada vez mais pequena até que dela só resta fumo e então também ela se dissipa como a lembrança do que foi...
Olhem para mim. Observem-me com atenção.
Um conselho... Não acreditem numa só palavra minha.
Passei toda a minha existência a aprender uma só coisa – a mentir. Tornei-me bom, muito bom... E eu estou a morrer à quase cem anos... Morro e vivo envolto na protecção que são para mim as minhas próprias mentiras.
Não sou um rapaz, nem um homem, nem um velho... Não preciso que acreditem em mim para ser o que sou.
Sou um vampiro. Sim... Ouviram-me bem. Um Vam-pi-ro... Exactamente... Como nas lendas, nos mitos e nos contos negros... Só que pior, muito pior... Eu sou real.
Ou... Então sou apenas louco... Vocês decidem...
Será que conseguem ver-me? Conseguem ver-me? E ouvir-me, conseguem?
Eu vejo-vos a todos diante de mim... Se falarem vou ouvir-vos... E se me derem essa hipótese e caso me apeteça posso matar qualquer um de vocês... Qualquer um.
Mas não acreditem em mim... Afinal se vos quiser enganar basta dizer-vos a verdade, não é? No final aconteça o que acontecer, achem o que acharem, pensem o que quiserem... Nada disto fará qualquer sentido não é?
Eu sou apenas um louco que não pode enganar a vossa inteligência...
Mas que inteligência... Que inteligência?
Primeira Pausa
(De costas viradas uma para a outra Cissa e Luísa caminham distraídas para o centro do palco e acabam esbarrando uma na outra... Luísa está a organizar e ler uns documentos e Cissa olha em seu redor cheia de curiosidade)
CA. – Olá! Por aqui!? Então...
Bem já foram quê... Uns 3 anos, não? Desde a última vez que nos vimos...
LA. – Sim, ou mais.
CA. – Mas tu... Fazes parte do grupo?
LA. – Sim, há quase dois anos... A minha prima é uma das directoras e eu estou no departamento recreativo. Só estou no departamento há uns cinco meses... Antes era colaboradora.
E tu... Eu sei que não estás na associação... Vieste ver?
CA. – Sim... Conheces a Cristina?
LA. – A Cristina Matos?
CA. – Sim. Ela é amiga de infância da minha mãe... Como este ano só tenho aulas na faculdade da parte da manhã fiquei com imenso tempo livre e detesto desperdiçá-lo todo a estudar...
A Cristina já me tinha convidado há mais tempo... Como ela está na Administração da Enturia segue de perto a vossa actividade e perguntou-me se eu não queria participar na Associação... Fartou-se de falar das vossas iniciativas... Eu gostava muito de poder fazer parte...
LA. – Ah, pois... Bem, sabes que se foste convidada pela Cristina é garantido que consegues pelo menos entrar no quadro da Associação, talvez até te coloquem já num dos departamentos... Não tenho a certeza disto mas acho que nos últimos 2 anos temos trabalhado quase exclusivamente para a Enturia, ou pelo menos é a única empresa em parceria connosco que nos paga por todo o trabalho que acabamos sempre por ter... Tens muita sorte...
CA. – Pois tenho... A Cristina é espectacular... Estou mesmo muita entusiasmada com isto.
LA. – Ainda estamos a preparar e organizar a reunião... Se quiseres podes esperar ali na sala de espera ou se preferires podes vir comigo... Eu apresento-te às outras raparigas do meu departamento.
CA. – Sim, sim... E já agora podias dar-me uma noção da organização e da distribuição das tarefas pelo quadro das pessoas que fazem parte da Associação... É que eu só sei as coisas assim muito por alto e não faço a mínima ideia de como é que vocês se dividem ou o que faz cada departamento...
LA. – Claro, vem comigo... Bem então deixa dar-te uma ideia que resuma em traços gerais aquilo que nós fazemos e os nossos objectivos...
(As duas saem do palco e Artur entra trazendo uma rosa vermelha na mão)
AN. – O que faço com o meu tempo...
Não tenho tempo. Não há dias para mim ou escondo-me deles e as noites não as conto... Para quê contar números se não podemos chegar ao fim... Os meus dias são como os números e eu estou perdido entre o um e o infinito.
O que faço com o meu tempo? Bem, presumo que o mesmo que vocês... Tento manter-me ocupado e entretido...
Mas para não pegar nos dias posso dizer-vos que os primeiros anos foram para esquecer... Um verdadeiro pesadelo, uma maldição... Até agora me custa ainda repensar aquelas noites... Apesar de ter passado tanto tempo... Não as esqueço. Mas depois... Uma vida nova.
Estava a dormir e acordei. Demorou mas finalmente despertei... E o encanto da minha nova vida... Ah (suspira e espreguiça-se).
Se vos contasse como o tempo correu naquelas noites... Como eu gozei a vida ou como gozei da vida... Tornei-me mau, verdadeiramente perverso... Chegeui a um ponto em que me convenci de que era eu a própria encarnação do mal.
Os meus devaneios deixavam-me acreditar que em mim estava ali naquelas horas da noite o derradeiro ofensor, finalmente o inimigo prometido ao homem e a Deus... O príncipe das trevas, o filho da Besta...Eu pensava mesmo que era o Anti-Cristo... Não o sentia apenas como também queria realmente acreditar nisso... Enfim alguma importância, algum papel a desempenhar...
Li sobre as profecias dos sábios e tudo parecia bater certo... Mas um dia acho que até Deus se fartou das minhas ilusões... Devo ter andado tão iludido que pude ofendê-Lo... É o que eu acho... Acho que por vezes me orgulho muito disso... Mas se o digo em voz bem alta e Ele me ouve então sou mais eu quem lamenta (recua encolhido numa espécie de abraço a si mesmo olhando para cima e em seu redor, depois esconde-se).
Segunda Pausa
CA. – Puxa... A reunião foi um espectáculo! Espero estar preparada já neste verão para poder estar lá com vocês na organização dos campos de férias.
LA. – Este ano vai ser o melhor. O ano passado foi óptimo mas este ano... Com estes subsídios... Vamos poder tornar as coisas ainda melhores e maiores... E depois ainda há a viagem a Inglaterra...
CA. – Sim... Lindo, vai ser lindo... Já alguma vez lá estiveste?
LA. – Gostava de ter ido... Mas não, nunca fui.
CA. – Eu já lá estive duas vezes. A primeira fui com os meus pais e depois fui para uma daquelas colónias de férias... No verão... Com pessoas de vários países... Foi um espanto!
LA. – Ah sim eu sei quais são... Eu sempre quis ir a uma dessas colónias... Mas são tão caras... Era sempre imenso dinheiro...
CA. – Sim, os meus pais pagaram muito para eu poder ir, mas olha que valeu a pena... Ias gostar de ter ido, mas acho que agora ainda vai ser melhor... Já somos mais velhas, vamos poder fazer muito mais coisas... Quando não estivermos a cumprir o programa podemos fazer o que nos der na telha... Podemos?
LA. – Sim, desde que cumpramos os horários... Acho que sim.
CA. – Oh, a sério estou mesmo entusiasmada com isto... E foi óptimo ter-te encontrado aqui... Nunca mais soube nada de ti desde o 12ºano. O que te aconteceu? Entraste para a Universidade?
LA. – Sim...
CA. – Então, em que curso, que faculdade?
LA. – Estou na de Letras, escolhi o curso de História...
CA. – E em que ano estás?
LA. – Passei para o 4º.
CA. – Eu estou em Direito, na faculdade de Direito de Lisboa... Mas então espera... Estás na de letras? Da Universidade de Lisboa não é? Então temos estado desencontradas estes últimos anos porque estudamos a poucos metros uma da outra... Já nos devemos ter cruzado várias vezes... Estas coisas até chegam a ser estranhas...
LA. – Talvez... Mas eu já te vi algumas vezes por ali...
CA. – A sério!? Então... Mas e porque é que não me disseste nada?
LA. – ... Não sei...
CA. – Devias ter vindo ter comigo... Bem mas agora estamos aqui as duas. Olha, vais fazer alguma coisa agora?
LA. – Não, vou para casa.
CA. – Mas tens que ir para casa fazer alguma coisa?
LA. – Tenho que passar umas aulas a limpo e também queria ver se estudava alguma coisa.
CA. – Ah... Está bem. Sabes, é que estou curiosa... Podíamos encontrar-nos outro dia... Eu gostava de compensar todo este tempo em que não nos vimos... Gostava de falar contigo.
LA. – Sim, podemos fazer isso... De qualquer forma antes também não nos dávamos assim tanto... Não vamos propriamente compensar nada mas sim vamos.
CA. – Sabes... Antes, eu achava que tu pensavas coisas assim... Menos boas de mim... Tu e a... Sara... Tu e a Sara andavam sempre juntas e parecia que não queriam muitas confianças com o resto do pessoal... Quer dizer eu lembro-me que tu antes até te davas com toda a gente mas de um dia para o outro parece que não querias mais nada com ninguém... Mas e a Sara, ainda te dás com ela?
LA. – Ás vezes estamos juntas...
CA. – Mas ela não está contigo na faculdade de Letras?
LA. – Não... Já esteve mas desistiu no final do segundo ano... No primeiro ano começou a trabalhar e no final do segundo achou que não podia estudar e trabalhar ao mesmo tempo... Por isso escolheu deixar de estudar.
CA. – Aí é... Que pena! Talvez mude de ideias e volte atrás... Mas então e onde é que ela trabalha?
LA. – Antes era empregada de mesa num café ali na zona do Saldanha mas agora está a trabalhar na loja da Zara, no Colombo...
CA. – A sério!? Estou farta de lá ir, já lá fui imensas vezes... Não me lembro de alguma vez a ter visto por lá.
LA. – Sim, bem... trabalham lá muitas.
CA. – Pronto mas então... Quando é que achas que podemos combinar qualquer coisa?
LA. – Não sei... Qualquer dia... Pode ser um dia qualquer... Quando tu quiseres.
CA. – Hum... Então queres vir amanhã comigo à baixa? Podemos dar lá uma volta e ver umas lojas... E almoçar por lá...
LA. – Sim, pode ser.
CA. – Ok, então dá-me o teu número para eu te ligar amanhã cedo só para confirmar as cenas.
LA. – ... 217164884...
CA. – E o do móvel...
LA. – Não tenho telemóvel...
CA. – Não!... Hum... Tá bem, então depois telefono-te para combinarmos melhor as coisas... Vá um beijo, xau.
(Saem as duas para cantos opostos e depois de alguns segundos soa a voz off que informa o público que há aqui um lapso temporal e vamos avançar dois meses na acção)
Terceira Pausa
(Artur entra e novamente toma o palco enquanto se ouve a música Paint it Black dos Rolling Stones... Vai buscar descontraídamente uma rapariga ao público e gentilmente trá-la até ao palco e pede-lhe que se sente numa cadeira... Entrega-lhe a rosa que trouxe para o palco na sua anterior aparição)
AN. – Como te chamas?
Então (nome da rapariga) como te sentes?
Será que tens alguma coisa para me dizer?
Muito bem... Então deixa-me fazer-te outra pergunta... Diz-me, porque achas que te trouxe até aqui?
Não sabes... Então pensa.
Porque será que eu te escolhi a ti? Estão ali outras, não estão?
Então porque te escolhi a ti e não a outra?... (pausa)
Será por seres mais bela ou elegante... Será porque tens um ar vivo e é mais difícil para mim tentar imaginar-te morta... Será porque me pareceste mais difícil ou talvez mais fácil...
Percebes a pergunta que te estou a fazer?
A pergunta é – o que me levou a reparar justamente em ti e a trazer-te até aqui?
Achas que se tiveres tempo para pensar então talvez me possas dar uma resposta?
(Pausa)
Talvez esta pergunta te possa parecer estranha... Talvez não faça muito sentido... Mas não tenhas pressas em tirar conclusões...
Talvez tu não concordes comigo mas eu acho que temos a noite toda para tentar dar uma resposta a esta pergunta...
(Pausa)
Pensa o que quiseres... Mas antes de voltares ao teu lugar deixa-me só dizer-te isto... Talvez não o entendas agora mas a pergunta que eu te fiz é a mesma pergunta que a vida te fará a todo o momento e um dia ou uma noite, mais tarde ou mais cedo, será a morte a fazer-te esta pergunta... Por isso pensa nisto...
Mais uma vez a pergunta é: Porquê tu?
Até já...
Quarta Pausa
(Depois de Artur sair de cena, Cissa e Luísa entram descontraídamente já a meio de uma conversa e começam a arrumar no centro do palco uma mesa redonda e duas cadeiras)
CA. – Este evento vai ser o máximo... A ideia é excelente!
LA. – Sim, também estou confiante... Mas ao mesmo tempo... Não sei, parece-me um pouco estranho... Acho que a ideia tem imensa piada e penso que tem tudo para correr bem mas não sei se vamos conseguir fazer muito dinheiro. Precisamos de atrair muitas pessoas e leiloar encontros de uma noite com homens pode parecer a muita gente um pouco... Arrojada, talvez demais.
CA. – A ideia é audaz e ambiciosa, vai deixar muita gente curiosa... Olha eu até gostava de saber quem são os tipos que aceitaram meter-se nisto... Se forem uns tótós talvez a coisa possa dar para o torto mas a Regina e a Claudia sabem muito bem o que fazem. Acho que convidaram amigos para se oferecerem no leilão e tu sabes muito bem o tipo de gajos com quem elas andam metidos... Cada um é melhor que o anterior... Só bonzões. Na pior das hipóteses vamos ter ali uma cambada de foliões armados em galos a dar saltos na capoeira e com a mania que sabem a melhor das cantadas para arrebatarem o coração das meninas carentes e doidas por um bom pedaço... Com certeza estão convencidos de que conseguem boas licitações e no mínimo podemos estar certas de que estão dispostos a montar aqui um espectáculo que, seja triste ou alegre, dificilmente será esquecido.
Eu estou mais do que confiante nesta gala, acho que vamos divertir-nos à brava e quando a noite estiver dada como morta acho que ninguém se vai lamentar de cá ter estado... Além do mais mesmo que nem tudo corra bem não nos arriscamos a muito mais do que uma boa comédia... E se as mulheres detestam chorar pelos homens, adoram rir deles.
LA. – Sim, acho que sim...
CA. – Oh, a sério... Só de pensar nisso... Aliás o que mais me entusiasma é mesmo isso... Por mais que tente não consigo prever o que pode acontecer nem como vai acabar a noite. Não sei se vai correr tudo às mil maravilhas mas é certo que vai ser no mínimo uma noite muito interessante... E se as mulheres sofrem, ainda que apenas pela metade, da curiosidade que este evento desperta em mim, acho que esta gala vai estar lotada e vai ser um estrondo! Ah, e de qualquer forma elas vão cobrar à entrada, não vão?
LA. – Sim, 7 euros e meio.
CA. – Pois! Então mesmo que os leilões não tragam o dinheiro que precisamos angariar podemos sempre contar com a receita das entradas e aquele salão ainda é bem grande. Se lotar teremos ali quantas pessoas... Umas 500 ou 600... Talvez mais, não?
LA. – Sim, 500... por aí.
CA. – Pois e tu disseste-me que estas galas costumam correr sempre bem não é?... Quantas pessoas tiveram na do ano passado?
LA. – No ano passado não lotou... Mesmo assim tivemos cerca de 400 pessoas na gala... Sim, em termos do dinheiro que fazemos com o que as pessoas pagam à entrada e depois em bebidas conseguimos sempre sair com uma boa soma... Mas elas estão à espera que este ano, esta gala, venha a ser a melhor e acreditam que vão tirar muito dinheiro a partir das licitações sobre os encontros. Acho que há uns 20 e tal quase 30 homens a oferecer um encontro e as licitações começam em valores a rondar os 100/150 euros...
CA. – Olha, sabes duma coisa... Eu estou mais do que bem servida com o meu namorado mas se vir por lá algum tipo que me agrade não sei se não me deixo cair na tentação, levanto o braço, e pago para ter um bom castigo...
E tu, já pensaste nisso? Até tinha piada... Pode ser que algum te diga qualquer coisa em especial. Sabes, no momento pode surgir faísca e mais tarde quem sabe... Talvez trovão... Trovoada!
LA. – Ah, não me parece. Mas não digo que não. Aquele ex-namorado da Claudia... Como se chama?... O Raul!... Se ele aparecesse por lá... Não sei, talvez...
CA. – Hum... Sim o espanhol! Oh si carino! Um belo exemplar do macho latino... Muy caliente eh!... Sabes eu começo a pensar que esta gala ainda se pode vir a tornar o rastilho para uma nova onda. Compramos os homens pelo que eles têm de melhor e no momento em que lhes notarmos os primeiros defeitos podemos trocá-los, revendê-los ou pura e simplesmente deitá-los fora. Afinal pagamos um serviço apenas e só enquanto precisamos de ver as nossas necessidades satisfeitas e é óbvio que não nos vamos contentar com um produto defeituoso... Depois de vermos todas as nossas necessidades satisfeitas podemos trocar contactos... Para o caso de querermos voltar a usar esse serviço e em certos casos para fazermos queixa e pedirmos o reembolso caso nem todas as necessidades tenham sido servidas de forma satisfatória.
LA. – É uma ideia. Sabes... Eu sempre pensei nos homens como automóveis... Se queremos conduzir temos que tirar a carta para não pormos em perigo outras pessoas nem andarmos por aí a chocar com tudo e ficarmos nós mesmas em más condições... Se realmente precisamos de um carro porque o levamos para todo lado onde vamos então o melhor é mesmo comprar um para nosso uso exclusivo... Podemos comprar um carro mais desportivo se estamos mais interessadas no prazer da condução e assim podemos apertar com o acelerador e entrarmos a abrir pelas rectas e curvas das boas estradas... Se por outro lado preferimos o conforto e a segurança em detrimento da velocidade é melhor procurar um carro mais seguro e estável que nos deixe confiantes no dia-a-dia e que apesar de não ser carro para grandes voos é um companheiro fiel nessa voltinha do nosso quotidiano... Depois há outros factores a ter em consideração. Como o que gastam em termos de combustível e o mais importante é termos em conta que por vezes pagamos um preço por um carro quando ele saí do stand mas raramente esse é o preço do carro... A verdade é que é muito fácil sair de um stand com um carro mas o problema são depois os custos com a manutenção. No final a factura a pagar pode ser muitas vezes superior àquilo que no início era a nossa intenção de dar pelo carro... O que me leva a concluir que nestas coisas é preciso ter cuidado e ver bem qual parece ser a solução que melhor se adapta às nossas necessidades... Por vezes o melhor é mesmo usá-los enquanto tudo está em óptimas condições e depois trocar...
CA. – Num plano tipo leasing... Não é? Bem no nosso caso e tendo em conta esta gala acho que temos aqui mais do que um bom número de boas oportunidades para fazermos uns test drives, quem sabe alugar um carro e mais tarde talvez até comprar...
LA. – Tem piada... Se alguém nos ouvisse agora a falar poderia pensar que somos duas daquelas mulheres de espírito convictamente feminista e que vêem os homens como brinquedos...
CA. – Pois, talvez... Mas quem pensasse isso só poderia ser uma de duas coisas... Ou homem ou estúpido. A mim parece-me que os homens sempre acharam que tinham herdado o mundo juntamente com as mulheres e que por isso podiam brincar com elas. Talvez sempre tenham brincado com as mulheres, talvez tenham abusado... E talvez agora seja hora de os brinquedos, finalmente fartos, também quererem brincar com os homens... Assim o que me parece é que as coisas estão agora a inverter-se. No fim veremos afinal quem brinca com quem.
LA. – Então e o que nos resta agora?
CA. – Como assim... Não sei.
LA. – Bem se lhes vamos tomar o lugar devíamos pensar seriamente em passarmos num 24 horas, agarrar numa palete de cerveja, ir para casa e ver futebol enquanto atiramos umas bocas bem porcas à televisão como se no campo eles nos pudessem ouvir...
CA. – Isso enquanto arrotamos e nos coçamos por todo o lado?
LA. – Precisamente!
CA. – Pois... Nã... Eu acho que é melhor deixarmos isso para eles e no resto continuarmos a fazer as coisas normais, coisas de mulher... Afinal a nossa intenção também não é ameaçar o sexo forte...
LA. – O sexo bruto queres tu dizer.
CA. – Por mim podem muito bem ser fortes e até brutos... Desde que o sejam apenas na minha cama...
LA. – Sabes uma coisa... Esta conversa podia até ter piada mas neste momento só está a deixar-me enjoada...
CA. – Sim, não sei como é que os homens aguentam isto todos os dias, de si mesmos, sem vomitarem...
(Cissa e Luísa saem e entra Artur)
AN. – Antes de matar alguém digo-lhe sempre que o vou fazer... Se possível até descrevo pormenorizadamente como o vou fazer.
Tornei-me tão bom a enganar que o faço já quase sem pensar, é algo natural... Mas quando eu tiro um verdadeiro gozo e excitação é nos momentos e na forma como deixo as pessoas saberem a verdade e então espero que se apercebam das consequências...
(Começa aqui a tocar a música Theatre des Vampires)
As mentiras nunca podem ser demasiado cruéis, exactamente porque são mentiras... Se quisermos podemos fugir delas, fingir que não são verdade e exactamente por não serem verdade é que elas morrem sem voltarem para nos assombrar... Já as verdades...
Hum... Tentem esconder a verdade de vocês mesmos ou dos outros e verão como ela virá de novo, uma e outra vez, para vos assombrar.
Eu sou um vampiro. Esta é a verdade e enquanto vocês se sentam aí nessas cadeiras sentindo conforto e segurança, tudo aquilo de que estão tão certos neste momento pode vir a jogar contra vocês mais tarde... Quem sabe se não será exactamente esse conforto e segurança aquilo que estimula a que alguém como eu vos queira encontrar...
Hoje voltam para as vossas casas, para as vossas vidas... Confiem nas vossas certezas, convidem-me a entrar e quando eu puder repetir a verdade apenas para os vossos dois ouvidos saibam que nesse momento o vosso conforto e segurança podem ter-me dado mais uma noite de prazer.
Quem quer saber a verdade?
Há mais como eu. Não muitos mas suficientes, suficientes para que vocês se devessem sentir agora um pouco menos seguros e confortáveis nessas vossas cadeiras...
Mas não acreditem em mim. Não se preocupem. Está tudo bem. Ninguém quer o vosso sangue... Que tolice! Ninguém vos quer fazer mal. Ninguém tiraria gozo de vos ver sofrer. Quem pode ser tão perverso ao ponto de se sentir excitado com as vossas expressões de terror e os sons que são capazes de produzir quando o medo vos toma por completo... Esse medo que afinal era verdade e nunca morreu dentro de vocês mas estava apenas à espera de ser acordado...
Alguém quer levantar-se, descer as escadas e vir até aqui ao palco?
Alguém quer vir comigo até lá atrás?
Se alguém quiser vir venha agora...
(Sai eventualmente acompanhado por um membro do público... Se alguém quiser ir até aos bastidores com Artur entra de novo a música Theatre des Vampires mas desta vez muito alto e lá dentro ouvem-se diferentes barulhos que podem ser produzidos pelas duas raparigas que devem estar preparadas)
Quinta Pausa
(Até que Artur saia de cena e acabe a música temos aqui novamente uma pequena pausa antes da cena seguinte. Depois entram em cena Cissa e Luísa que trazem um número 5 para colocarem na sua mesa, mesmo antes de entrarem começa a tocar a música Shadows of Ourselves dos Thievery Corporation, se esta música acabar entretanto entra a Looper)
CA. – Uau! Isto está à pinha!... É incrível, aquelas miúdas sabem mesmo o que fazem!
LA. – Sim... Acho que até está gente de mais aqui no salão...
CA. – E já viste cerca de 70% das pessoas que aqui estão são mulheres. Acho que a ideia dos leilões atraiu muita atenção... Bem, acredita no que eu te digo, esta gala vai ficar para a história... Ninguém se vai esquecer desta noite.
LA. – Sim, esperemos que sim.
CA. – Sabes do que é que nós estamos a precisar...?
LA. – Não, diz lá.
CA. – Temos que aquecer o estômago... E soltar a mente... O que bebes?
LA. – Não sei... Não costumo beber. Mas escolhe o que quiseres, eu tomo o mesmo que tu.
CA. – Então espera um segundo, já volto.
(Levanta-se, vai buscar dois copos aos bastidores e regressa)
LA. – O que é?
CA. – Prova... Se o primeiro golo não te animar continua a marcar... Não saímos daqui hoje sem metermos uma goleada. (Há aqui uma pequena pausa em que as duas bebem e olham em seu redor... Luísa sente uma pancadita da bebida e isso nota-se... Voltam a olhar uma para a outra e Cissa retoma)
Olha, por falar em golos... És adepta de algum clube de futebol?
LA. – Sinceramente acho o futebol uma parvoíce pegada... Para lá do que é evidente, ou seja, aquilo que qualquer pessoa racional devia perceber se olhasse para o fenómeno com a mínima atenção... Acho que é evidente que é um desporto colectivo que ganhou uma importância ridícula, mas para lá disso penso que as pessoas deviam perceber que trás muito mais chatices e problemas do que trás diversão e alegria.
CA. – Ai sim?
LA. – Eu penso que o futebol é a prova provada da enorme pobreza de espírito das pessoas que o seguem como se se tratasse de uma coisa que realmente merece muita atenção. Acho que não passa de uma tremenda ilusão e normalmente é também uma desilusão... Mas serve apenas os interesses de uns gangsters que até são espertos e apenas se ligam ao meio num sentido muito objectivo... Encaram o futebol como um negócio, jogam sujo e fazem muito dinheiro...
É realmente muito triste... São tantas as pessoas que vêem o futebol com uma saída para aquilo que é a normalidade desinteressante das suas vidas... Mas acho que acabam por tentar sair de um buraco para se enfiarem noutro ainda maior.
É que em Portugal o futebol é antes de mais triste... Tudo... Toda a realidade à volta do futebol constrói uma novela sórdida... Eu nem preciso descrever episódios que o exemplifiquem porque a verdade é que ninguém esconde nada... Os próprios meios de comunicação enchem-se de trabalho à conta do que se vai passando nos clubes, isto porque sabem que essas notícias chamam muito a atenção do público...
Sei que ninguém gosta de generalizações sobretudo quando é para malhar nas pessoas mas eu penso muito sinceramente que o público português é muito triste e continua à procura de mais razões para ficar ainda mais triste... Não sei o que te parece isto mas eu estou pronta para lhe chamar burrice.
O futebol é básico do ponto de vista da análise sociológica do fenómeno... É como o circo para os romanos... Uma grande ilusão moderna construída à medida das pessoas que não encontram nada nas suas vidas a que valha a pena agarrarem-se com verdadeiro entusiasmo... Assim preferem preocupar-se com coisas absolutamente laterais e que se não recebessem a atenção que recebem, não passavam de notas de rodapé... As pessoas fogem do que é central e importante para se entregarem ao que não as poderia afectar... Mas agora já afecta e eu acho que afecta a generalidade das pessoas de forma mais do que negativa...
CA. – Puxa, tu tens mesmo uma opinião muito feia do futebol!
LA. – Sim, tenho.
CA. – Oh, mas devias saber que nada é tão feio ou bonito... É uma questão de atitude... A forma como encaras as coisas... O futebol pode ser feio, muito feio... Mas se vivido de uma forma saudável também pode ser lindo... Vai por mim. Mas e então tens algum clube?
LA. – Não, não tenho... Bem, mas... Acho que se tivesse seria o Sporting...
CA. – O Sporting... Oh, pois... Nã, nã, nã, não... Benfica. O Glorioso... Devias era ser benfiquista, ias ver que logo mudavas de opinião em relação ao futebol...
LA. – Pois, é bem possível... Mas acho que é isso o que mais me devia preocupar.
CA. – O que queres dizer?
LA. – Bem... Deixa pôr as coisas desta forma... Se o futebol português me mete nojo... Acho que podes fazer uma boa ideia do que sinto quando se fala do maior clube de futebol português...
CA. – Ai, ai, ai... Mas tu tás a ficar parvinha! Só pode...
LA. – Para já acho que não... Pelo menos ainda não... Mas se realmente começares a sentir razões para desconfiar, tenta procurar na minha carteira o cartão de sócio do Benfica... Se encontrares vou ser obrigada a concordar.
CA. – Aiii... Vou morder a língua só para não falar mais nada que te deixe ganhar balanço para dizeres mais uma dessas alarvidades... De qualquer forma deixa-me dizer-te que tenho sido feliz toda a minha vida e desde que me lembro que sou fã do Benfica.
LA. – Pois... Bem, como é que é... Ninguém pára o Benfica... Não é.
CA. – Podes crer.
LA. – Então pronto deixa-me só fazer-te uma pergunta...
CA. – Força.
LA. – Já nos conhecemos há algum tempo não é? Agora gostava que me dissesses qual pensas que é o defeito que primeiro te ocorre quando pensas em mim.
CA. – ... Hum... Não sei... Tinha que pensar um pouco nisso, a sério...
LA. – Pois olha que sendo muito sincera, eu posso encontrar já um defeito sério em ti.
CA. – Ai sim... E qual é?
LA. – Seres benfiquista.
CA. – O quê?
LA. – É um sério defeito teu... Mas é o primeiro e o único que posso apontar agora, por isso encara isto como um elogio para ti e uma crítica aos benfiquistas, está bem?
CA. – Mas eu sou uma benfiquista de coração e alma...
LA. – Pois... E isso é algo que eu só posso lamentar...
CA. – Olha, se tu não tivesses já meio tocada pela bebida eu podia levar-te a mal mas como sei que essas parvoíces que estás a dizer são só a bebida a falar...
LA. – Ok, então se quiseres provar a tua teoria vai buscar-me outro copo e pode ser que depois de o beber eu até cante contigo o hino do Benfica e então ficamos as duas bem vermelhas e felizes...
CA. – Caramba Luísa, tu não desistes mesmo pois não... Olha que se continuares a dizer essas coisa vou achar que tens alguma mágoa muito grande e que nunca se curou... Mas os benfiquistas não têm culpa de ser melhores que os outros, afinal estamos todos nisto para ganhar... Mas vá, nem mais uma palavra sobre futebol... Eu vou buscar outra bebida.
(Cissa saí de cena para ir buscar outros copos... Luísa levanta o seu copo vazio e finge que é uma taça... Faz isso gozando com o público ao mesmo tempo que canta ao som da música do Benfica que agora toca)
Sexta Pausa
(Começa a tocar a Born to Darkness e pouco depois Artur entra no palco com um sorriso rasgado no rosto... Começa a despir a roupa calmamente e troca para uma roupa mais casual mas elegante, enquanto se veste fala...)
AN. – Nem todas as noites saio para a rua... Há dias em que me deixo ficar... Só.
Acho que já não me lembro de como era estar triste... Às vezes até acho que sinto a falta da tristeza... Aquela tristeza que os poetas chegam a desejar só porque é inspiradora... Quando me tornei imortal paguei esse preço... Perdi a minha humanidade e agora mesmo estando aqui não posso sentir muito mais que isto... Despi-me dos sentimentos que me tornavam humano e agora limito-me a ser o que sou, um espírito que existe sem qualquer apego ao que o rodeia... Mas só assim sou capaz do que sou capaz.
Antes de morrer pensava que sentir saudade da tristeza só poderia ser sinal de demência... E é... A tristeza é uma resposta saudável do espírito a um momento que não dá lugar aos nossos desejos... Eu nunca me sinto triste porque já não desejo nada. E nem sequer consigo lembrar-me do que significava sonhar. Estou realmente morto.
Sabem... Chego ao ponto de passar várias horas sem que sinta alguma coisa, sem que a minha disposição se altere minimamente.
Quando o passar do tempo perde o sentido, nós perdemos o sentido... Aos poucos o mortal muda e transforma-se tal como o mundo à sua volta... Mas o imortal não. O imortal permanece o mesmo até que o mundo o atira para a margem como uma pedra no passeio... Uma identidade difusa uma impressão no presente de uma realidade desactualizada e finalmente este ser já não se reconhece a si mesmo porque gradualmente esqueceu como era o sentir de estar vivo... Na morte não se sente nada mas podemos lembrar como era estar vivo... Até o esquecermos e então... Nada...
Não tenho escolha. Sou portanto um ser que caminha sem sair do mesmo lugar... Estou às ordens de forças que me são estranhas. Sou um servo do mal mas não conheço nem posso influenciar o seu plano. Sou uma peça no tabuleiro do jogo...
Esta noite sei onde vou, sei do que vou à procura e sei que tenho que lá ir... Mas não sei o que vou encontrar. Se a minha existência não é minha talvez a de alguém que lá me espera venha a ser.
(Sorri... Acende um cigarro, volta-se para trás e pega fogo ao crucifixo que Luísa vai apagar com um pano encharcado)
Tal como Ele eu também fui sacrificado... Ele para vos salvar e eu para vos condenar. O bem e o mal... Ele é adorado e está em todo o lado, eu fui esquecido mas esta noite estou aqui.
Deixem-me que desvende para vocês o mistério da vossa salvação ou condenação...
Ao que parece, Deus criou o mundo e deu ao homem a oportunidade de escolher entre Ele próprio e Nada... Aqueles que se reconduzissem a Ele estariam de volta a casa para a eterna celebração do Bem... Entretanto alguns de vocês precisam de um pouco de persuasão pois só são capazes de escolher Deus depois de levarem um susto do Demónio... Ás vezes para se ver o bem é preciso primeiro ver o mal... É aí que eu entro em cena... Assim, eu e outros passeamos no meio de vós para vos darmos uma perspectiva das coisas... Se apesar disso ignorarem os sinais divinos vão-se perdendo do resto do rebanho e não vão saber como voltar a casa... Sofrem portanto as consequências de não terem reconhecido a verdade.
Pois é... Deus criou-vos para se lembrar a si mesmo de como é bom e glorioso e ai de vocês se não concordarem com Ele...
Sabem como é... Se o pai se farta do filho proíbe-o de entrar em casa... Afinal o pai só quer que o filho veja a verdade... Deus é a verdade e o resto é nada, é mentira...
Por isso muito cuidado. Oiçam o que ouvirem, verdade ou mentira, o importante é não se deixarem enganar porque no momento da vossa morte acaba a sua complacência... Tiveram a vossa chance e agora terão que se haver com as consequências das vossas próprias escolhas...
Agora eu vou vender-me como uma prostituta... Esta noite, quem me comprar talvez esteja a comprar a sua condenação.
Sétima Pausa
CA. – Olha, olha... O leilão vai começar.
LA. – Sim... Vamos lá então ver essas carnes (agora Luísa está numa atitude bem mais divertida, deve se portanto notar que já está sob o efeito do álcool).
(Neste momento Cissa puxa uma pasta com um aspecto o mais formal possível, poisa-a na mesa virada para cima e de forma a que o interior não seja visível da perspectiva do público... Deve parecer como uma pasta cheia de dinheiro... Do interior Cissa tira umas 25 fotografias de homens muito bonitos e no momento em que passa algumas dessas fotos a Luísa começa a música I’m too sexy for my shirt... As duas começam por brincar apenas uma com a outra mas logo se levantam e dirigem ao público passando as fotos e fazendo comentários em tom cúmplice para as pessoas na assistência... Neste momento e quando as duas saem de palco o rapaz do aviso inicial começa a chamar alguns dos rapazes na assistência e leva-os para o palco onde ele começa a fazer uma espécie de striptease cómico e incita os outros rapazes a fazerem o mesmo... Esta cena deve-se prolongar até ao final da música e nesse momento o rapaz do aviso inicial volta ao seu lugar e assegura-se que os outros rapazes o seguem... Quando a ordem estiver restabelecida e Cissa e Luísa tiverem voltado ao palco aparece Artur com uma pose mais natural e uma expressão de simpatia... Caminha até perto das duas e fala para um destinatário indefinido)
AN. – Boa noite.
CA. – Boa noite!
LA. – Boa noite (quase colado às palavras de Cissa)
(Artur está em pé, atrás e no meio de Cissa e Luísa que estão meio viradas na cadeira para o observarem)
AN. – Iniciativa, autonomia, empenhamento, comportamento, métodos, conhecimento... Sou um rapaz muito esforçado e tenho uma noite especial preparada para uma de vocês...
Preparada com todo o cuidado, para que não seja só mais uma noite.
Penso que quero o mesmo que qualquer uma de vocês... Divertir-me, mas quero divertir-me mesmo.
Vou-me esforçar para satisfazer quem quiser aceitar o meu convite... Apresento-me e espero depois receber eu o convite para entrar e então vou dar-me a conhecer...
(Caminha até ao público)
Sim... É claro que tenho limitações, restrições... Até certo ponto não posso cruzar o vosso caminho... Enquanto me estiver vedado. Tenho que ser convidado... Não só a entrar em vossas casa mas mesmo muito antes disso... Tenho que ser eu a receber um primeiro olhar, palavra ou gesto... São vocês que chamam a minha atenção.
Eu sou frio... Sou frio porque mato indiscriminadamente... Tal como Deus. Mas eu sou obrigado a esperar até que vocês me dêem uma oportunidade de retribuir a vossa atenção...
(Afasta-se do público e recua no palco)
Quem vem comigo?
Quem quer vir comigo?
LA. – Eu (levanta o braço calmamente)...
(Cissa olha muito espantada para a amiga e vai abrir a boca para dizer qualquer coisa mas Artur deita-lhe um olhar diferente e apenas sai um som mudo... Em voz off ouve-se – Vendido! Vendido à senhora da direita na mesa número 5... Pouco depois Artur aproxima-se de Luísa e num gesto que deve inspirar confiança, estende-lhe a mão, ajuda-a a levantar-se, entrega-lhe um pequeno cartão, sorri e despede-se com um só beijo. Artur saí de cena e a música regressa)
CA. – Bem... O que é que se passou ainda agora?... O que foi que te deu? Tens a certeza...
LA. – Tenho a certeza?... Ah... Sim, gostei dele (aqui Luísa começa num tom meio apagado como se estivesse longe dali... Depois volta a si).
CA. – Pois, isso vi eu... Mas porquê ele? Quer dizer, não está mal mas... De todos os tipos que podias ter escolhido foste logo para o que parecia mais estranho.
LA. – Sim? Pareceu-te estranho!?... Eu achei-o sincero.
CA. – Hum... Tá certo. Eu acho é que tu te andas a preparar para outra festa...
LA. – Qual festa? (Luísa deve parecer recuperar da bebida neste momento e agora fica mais desperta mas também insegura em relação ao que acaba de se passar)
CA. – (Ri-se) Bem, esquece isso... Então, mas e agora... Quando é que lhe ligas?
LA. – Ah... Não sei... Talvez amanhã...
CA. – Vê lá isso... Afinal abriste mesmo a carteira por este tipo, não vais agora esquecer-te de lhe telefonar para combinarem o tal encontro.
LA. – Pois... Tenho que lhe telefonar... Amanhã à tarde, ou à noite, telefono-lhe.
CA. – Sim, faz isso.
LA. – Eu... Gostava de te pedir um favor... Tou um pouco insegura, agora... Vens comigo?
CA. – Vou contigo!? Onde?... Ao encontro! Mas... Bem, eu vou, se quiseres vou contigo... Mas acho que pagaste muito dinheiro por esse encontro... Acho que devias ir...
LA. – Vem comigo, a sério, vem comigo. Vens?
CA. – Sim vou, vou contigo... Mas pensa nisso... Se na hora H afinal mudares de ideia e decidires ir sozinha diz-me... Eu acho realmente que devias ir sozinha... Mas não tenho problema nenhum em ir contigo.
LA. – Obrigado.
(A cena que se segue é uma espécie de intervalo... Cada uma das personagens se dirige ao seu canto da sala que está decorado de acordo com as características individuais de cada um... Estão a preparar-se para o encontro e a música que toca neste momento é a Bad Bad Thing do Chris Isaak. Artur já está vestido, põe perfume e ajeita a roupa depois segue para o canto de Luísa que está neste momento ao telefone e que quando sente a presença de Artur parece entrar num estado de transe, caí para trás e Artur agarra-a, encosta a cara à cara de Luísa e sente o seu cheiro, depois diz-lhe algumas palavras ao ouvido mas são inaudíveis devido ao som da música que toca bem alto... Artur ajuda Luísa a levantar-se e depois afasta-se e vai para o canto onde está Cissa. Quando se aproxima dela, Cissa também parece sentir uma impressão estranha e passa discretamente as mãos pelo corpo e Artur faz o mesmo... Este deve ser um momento de acentuada tensão sexual... Nem Cissa, nem Luísa reconhecem a presença de Artur mas o seu comportamento altera-se devido a esta presença. Ao fim de algum tempo Artur saí de cena e enquanto Luísa reza, Cissa encosta-se à parede e deixa-se cair devagar enquanto olha para cima e em seu redor... Este é um momento forte e estranho, é a preparação para a cena final e os monólogos dos 3 personagens. O intervalo acaba quando a música terminar e nesse momento Luísa decora a mesa que está no centro do palco e prepara-a para o jantar – mesa redonda tamanho médio, 3 cadeiras, 1 toalha branca, simples mas bonita, 1 garrafa de vinho, 3 copos, 1 candelabro com várias velas, algumas flores bem simples, 3 em cima da mesa e outras tantas à frente, entre a mesa e o público... Estas flores mais tarde serão pisadas pelos 3 actores durante os monólogos. Depois de tudo estar pronto Cissa aproxima-se de Luísa)
CA. – Uau! Bem miúda, que belo esforço...
LA. – Gostas? Fico contente... Não é nada de especial mas queria... Bem, quero que tudo corra bem...
CA. – Então e ele... Quando chega?
LA. – Deve estar mesmo aí a chegar. Olha vê lá o que tenho aqui... Ajuda-me a escolher um cd para deixar a tocar... (aproximam-se da aparelhagem)
CA. – Deixa-me lá então ver o que tens aí... Ah olha este é excelente, põe este... Ou se preferires põe este, também é óptimo... (põem um cd a tocar, ouve-se a música Directions do Josh Rouse... Cissa dá uns passos ao som da música num jeito de brincadeira com Luísa e só depois é que a música baixa para um tom de música ambiente assim que Cissa parece lembrar-se de qualquer coisa e pára começando a falar)
Então mas conta-me... A conversa ao telefone... Como é que combinaram as coisas? Quando é que lhe ligaste?
LA. – Esta tarde...
CA. – Sim, e...
LA. – Sabes, é estranho... Por acaso até te queria falar disso... Espero que ele não esteja já aí a chegar...
CA. – De certeza que ele vai chegar atrasado... É típico... Para dar aquela ideia de que é um tipo ocupado... Deve andar por aí a matar (tosse/limpa a garganta)... A matar tempo... Bem mas diz-me lá então o que se passou...
LA. – Pronto... Eu até nem acho que isto seja alguma coisa de especial mas... Eu não sei... Tenho a certeza de que estivemos uma meia hora ao telefone mas eu não me lembro de nada do que falámos... Lembro-me perfeitamente de ter pegado no telefone e de lhe ter ligado... Lembro-me que não esperei tempo nenhum porque ele atendeu de imediato e até me lembro do tom da voz dele quando atendeu...
CA. – E que tal era o tom da voz dele?
LA. – Muito agradável!
CA. – Sim, mas e mais...
LA. – O que é mais estranho é que exceptuando uma coisa ou outra, não me lembro de nada do que falámos durante essa meia hora e apercebi-me disso mal desliguei o telefone... Como se nesse momento tivesse apenas um espaço em branco... Percebes? É estranho... Nada...
CA. – O quê!?... Isso não faz sentido nenhum.
LA. – Pois não...
CA. – Mas... E como é que sabes que estiveram meia hora ao telefone se não te lembras do que falaram?
LA. – Porque o meu telefone dá um resumo das chamadas... Diz-me quanto tempo duraram. 33 minutos...
CA. – Mas combinaste a hora, o local e essas coisas não foi?
LA. – Sim, disso lembro-me.
CA. – E o nome dele, perguntaste-lhe?
LA. – Sim... Mas também estava no cartão... Chama-se Artur Nevelo.
CA. – E disseste-lhe que eu me ia juntar a vocês neste vosso encontro?
LA. – Pois... Disso não me lembro... Do resto não me lembro.
CA. – Mas isso não faz sentido nenhum... Como é que é possível teres estado meia hora ao telefone e não te lembrares da conversa... Isso não faz sentido nenhum.
LA. – Sim, eu sei que não faz...
CA. – Mas e então... Porque é que não lhe voltaste a telefonar?
LA. – (Vira-se para Cissa com uma expressão do estilo – Porque é que achas?) Achas que lhe ia voltar a ligar e dizer que não me lembrava de quase nada do que tínhamos acabado de falar ao telefone, se por acaso ele não se importava de me dizer o que tínhamos estado a falar... Isto até te pode parecer estranho mas eu não gosto de dar uma de maluca assim que estou prestes a conhecer alguém.
CA. – Sim, sim claro, esquece... Espero que lhe tinhas dito que eu estou aqui contigo senão isto vai parecer-lhe no mínimo um pouco estranho.
LA. – Sim... Esperemos que sim.
CA. – Sim e esperamos... Já viste como esperamos! O tempo está a passar... Ele ou tem alguma razão para chegar atrasado ou está mesmo a fazer-nos esperar... Isto deve ajudar a fazer crescer em nós a ânsia não é?... Eu acho imensa piada aos homens... Eles realmente convencem-se de que percebem mais de mulheres do que nós, que somos mulheres...
LA. – Estás ansiosa?
CA. – Estou... um pouco, tu não?
LA. – Sim... Um pouco mais do que devia... Não sei porquê mas estou nervosa, tenho-me sentido nervosa desde que lhe telefonei. Isto é de mim... Já não andava metida nestas coisas há tempo...
CA. – Estas coisas... Que coisas?
LA. – Não sei, encontros... Tu sabes... Ás vezes chegava a pensar que... Olha, chegou!
AN. – Boa noite!... Peço desculpa pelo atraso... Quando estava a vir para cá apercebi-me que vinha de mãos a abanar e pensei que seria melhor passar numa loja e trazer qualquer coisa... Vinho, pão fresco e um bolo para a sobremesa.
LA. – (Nervosa) Sim, sim, óptimo... Não tem problema... Estivemos aqui as duas a falar...
AN. – Claro. Espero que não tenham falado muito de mim. Ainda não lhes dei motivos para isso... Mas não se preocupem... Já vou dar.
CA. – Bem... A isto se chama entrar a matar...
AN. – Não... Só achei que já que estamos aqui os três e vamos jantar, devíamos deixar de lado as conveniências sociais e passar logo à parte divertida destas coisas...
LA. – Sim, isso seria óptimo.
CA. – Certo. Ok, então... Artur não é?
AN. – Sim.
CA. – Posso tratar-te por tu não posso?
AN. – Claro.
CA. – Então, Artur, vamos lá, diz-me o que fazes na vida.
AN. – Sou dono de uma funerária.
LA. – A sério!? Dono de uma funerária... Bem isso... Deve ser um pouco... Estranho, quer dizer, não é mas... Acho que nunca tinha conhecido alguém que trabalhasse nessa área...
CA. – Oh, é estranho sim... Isso é estranhíssimo.
AN. – Sim acredito que vos deva soar um pouco estranho, mas se vissem as coisas como eu as vejo aposto que não iriam estranhar o que faço.
CA. – Mas então e como é que deste com esse trabalho... Como foi que te tornaste dono de uma funerária?
AN. – Da forma mais simples... Comprei-a.
LA. – Mas porquê, para quê? O que fazes como dono?
AN. – Contrato e despeço pessoas... Ganho dinheiro. O meu trabalho é bastante simples, apenas preciso de estar em contacto com quem trabalha para mim para me assegurar de que tudo está em ordem... Faço uma espécie de gestão, tal como se se tratasse de uma empresa qualquer... O princípio é o mesmo... Ganhar dinheiro.
LA. – Tens algum curso de gestão?
AN. – Não.
CA. – Então e porque foi que compraste uma funerária? Não é um negócio um pouco mórbido?
AN. – Não, acho que não... Da forma como vejo as coisas todos os negócios envolvem sempre 2 coisas: Dinheiro e pessoas... Se à partida estava certo de que queria ganhar dinheiro então pensei em qual seria a única coisa na qual poderia sempre confiar relativamente a todas as pessoas... Um dia todas as pessoas morrem e como há muitas pessoas pareceu-me que seria uma boa ideia apostar num serviço com tantos potenciais clientes...
CA. – Isso é no mínimo perverso...
LA. – Sim, mas vendo as coisas por esse prisma parece-me uma aposta lógica.
CA. – Sim... Olha, desculpa a indiscrição... Embora me pareça que não vamos perder muito tempo tentando ser discretos... Ganhas bem com esse negócio?
AN. – Oh sim... Não me posso queixar.
CA. – Pois... Até acredito que neste momento, talvez até não muito longe daqui, alguém está prestes a bater as botas... Um potencial cliente não é?
AN. – Que por mim com certeza será muito bem servido...
LA. – Ok, acho que o ambiente aqui está a ficar um pouco negro de mais para o meu gosto... Não querem sentar-se? Eu vou ver como estão as coisas lá dentro. (Saí de cena deixando Artur e Cissa a sós)
CA. – Já sabemos o que tu fazes na vida... Não queres saber o que nós fazemos?
AN. – Sim, podes dizer-me...
CA. – Não, espera... Tenho uma ideia melhor... Vamos fazer assim: Vais ficar um pouco mais connosco e depois podes tentar adivinhar...
AN. – Até posso adivinhar já... Se quiseres.
CA. – Sim!? Achas que és capaz?
AN. – Sim, acho que sim.
CA. – (Ri-se) Está bem... Então vá, tenta.
AN. – Tu estás no 3º ano de Direito e a Luísa está no 4º do curso de História.
CA. – Ah... Pois. Ela já te contou... Não foi?
AN. – Não... Pediste-me para adivinhar... Estou a ver que acertei.
CA. – (Ironicamente) Pois... Sim, acertaste.
(Luísa regressa em cima desta frase)
LA. – Bem espero que gostem do que eu estou a preparar para o jantar... Neste momento ainda não posso garantir que esteja a sair como deve ser, mas façam figas. Na pior das hipóteses, se não estiver bom, podemos ir já aqui ao lado buscar frango de churrasco... Hum... Artur, não cheguei a perguntar-lhe...
AN. – Perguntar-te... Trata-me por tu, por favor.
LA. – Sim, perguntar-te... Tens alguma restrição quanto à alimentação? Não és vegetariano pois não?
AN. – Não, não, não te preocupes... Eu como de tudo.
LA. – Óptimo.
CA. – Há uma coisa que eu não percebo... Desculpa-me a pergunta mas não devias ter sido tu a organizar este primeiro encontro?
AN. – (Olha para Luísa antes de responder... Não procura apoio, apenas confirma que ela não vai dizer nada – Luísa parece um pouco atrapalhada neste momento) ... Sim... Mas a Luísa disse-me hoje, na nossa conversa ao telefone, que tu te ías juntar a nós e que ela se sentia mais à vontade se fosse ela a tratar das coisas... De qualquer forma, e como eu tinha dito à Luísa, faço questão de ser eu o anfitriã do nosso próximo encontro... Se houver oportunidade para tal...
CA. – Oh, então! Não estás preocupado com a possibilidade de nós podermos não apreciar a tua companhia esta noite e rejeitarmos uma outra... Pois não?
AN. – Não. Isso não me preocupa. (Há aqui um tom de brincadeira e cumplicidade entre os dois)
CA. – Uh... Que confiança hein...
LA. – Se eu estiver a mais digam-me...
CA. – Oh Luísa, então, o que é isso?
LA. – Tem calma... Estou só a brincar. Artur, és casado ou solteiro?
AN. – Solteiro.
CA. – E feliz?
AN. – Tão feliz quanto possível.
CA. – Não sei se isso responde à minha pergunta...
LA. – E namorada... Tens?
AN. – Não.
CA. – Então qual é que é o teu problema?
AN. – Qual é o meu problema!... Porque é que me perguntas isso?
CA. – Não sei, acho apenas que não me pareces o tipo de pessoa que queira estar só...
AN. – Tens razão, não sou.
CA. – Então... Mais uma vez... Qual é o teu problema?
LA. – Oh Cissa que inconveniente!
AN. – Não, não é nada inconveniente... De todo. Neste momento não sei bem como responder a essa tua pergunta mas vamos deixar a noite cair em cima de nós e pode ser que tu própria possas responder a essa pergunta.
CA. – Uh que misterioso e assustador...
LA. – Bem, acho que todos guardamos alguns esqueletos no armário...
AN. – Precisamente. E se calhar ninguém é realmente misterioso mas todos podemos ser muito assustadores, basta para isso que estejamos dispostos a deixar que se saiba a verdade sobre nós.
CA. – Uau! Então e se nós deixássemos por uma noite que nesta sala se soubesse toda a verdade sobre nós... O que achas que poderia acontecer?
AN. – Não sei... Podemos experimentar e ver como aguentamos as consequências à medida que as verdade forem sido ditas.
CA. – Óptimo, excelente! Afinal este encontro ainda pode vir a tornar-se uma experiência muito interessante.
LA. – Mas então o que estão a dizer... Vamos celebrar um pacto em como esta noite falamos toda a verdade, apenas a verdade e nada mais a não ser a verdade... É essa a ideia?
CA. – Sim, sim vamos a isso.
AN. – Bem, se há acordo...
CA. – Luísa... Como é, alinhas?
LA. – Não estou a ver como vamos conseguir chegar à verdade mas se encontrarem um caminho... Eu estou lá.
CA. – Um caminho... O que queres dizer?
LA. – Sim, como queres que se saiba a verdade? Queres jogar um jogo tipo verdade ou consequência... É isso? Não sei porquê mas sempre tive a sensação que o intuito desse jogo não fosse bem o de se saber a verdade...
AN. – Achas que não?
LA. – Sim, acho que não.
AN. – Queres explicar porquê?
LA. – Não é óbvio!?... Esse é um jogo jogado por todos os jovens para se poderem enrolar sem que isso pareça demasiado desapropriado...
AN. – Não deixa de ser uma forma de se saber a verdade...
LA. – O quê! Nem percebo o que estás a tentar dizer...
AN. – Como tu própria disseste eles usam o jogo para terem o que querem. Ora o jogo pode ser aquilo que mascara a verdade mas é o próprio jogo que permite que ela se concretize... Lá porque parece escondida isso não quer dizer que não esteja lá... É apenas uma questão de levantar a mascara e o que aconteceu aconteceu e essa é a verdade.
CA. – (Brinca batendo palminhas para Artur) Acabas de desvendar o segredinho sórdido da massa imberbe de jovens desejosos de passar à acção... Mas sabes, nós já passámos essa fase. É que eu percebo a Luísa... Não podemos esperar que a verdade apareça se atirarmos perguntas uns aos outros porque a verdade só aparece naquelas respostas que são dadas a perguntas certas, ou seja, o que iria importar seriam as perguntas e não as respostas... Brincar às perguntas e respostas acaba por ser sempre um exercício de retórica...
LA. – Sim, se queremos seguir em frente vamos ser sérios... Como é que podemos forçar a verdade surgir?
AN. – Não podemos.
LA. – Então voltámos ao princípio.
AN. – Talvez não.
LA. – Talvez não!?
AN. – Sim porque talvez a verdade esteja sempre a lutar para sair de dentro e vir cá para fora, assim não é preciso forçá-la a sair, basta deixarmos de tentar forçá-la a ficar... cá dentro.
CA. – Muito bonito... E como é que sugeres que façamos isso?
AN. – Com alguma ajuda...
CA. – Que ajuda?
AN. – O vinho... In vino veritas...
(Luísa e Cissa riem-se, olham uma para outra e de volta para Artur)
Eu posso começar e enquanto eu vos dou a minha verdade vocês mantêm os copos vazios...
LA. – E quando é que bebemos?
AN. – O vosso trabalho é manter os copos vazios, o meu é enchê-los... Forcem o vinho para dentro e a verdade virá para fora.
CA. – Vamos a isso!
AN. – Comemos primeiro?
CA. – A comida pode esperar...
LA. – Mas... Não têm fome!?...
AN. – Ainda não.
CA. – Eu também não.
LA. – Pronto, então vamos a isso.
(Artur enche os 3 copos com ar sério e bebe o seu duma só vez... Cissa e Luísa riem-se)
LA. – Só uma coisa... Como sabemos que todos falamos a verdade?
CA. – Não sabemos... Quem mentir será condenado e punido... A sua alma arderá para sempre no fogo do inferno.
AN. – (Sorri para o público) Pode ser...
LA. – Ok, parece que chegámos a um acordo... Agora vamos ao que interessa... Então Artur, que verdades tens tu para nos contar?
AN. – Verdades não, verdade. Na minha história há uma só verdade que interessa, é a verdade da minha vida, aquilo que me aconteceu... Aquilo que me tornou no que sou... Um maldito.
Em tempos eu fui como vocês as duas agora... Sei que olham para mim e vêem o corpo de um jovem de 26 anos mas é o que não vêem que realmente interessa.
Eu não tenho um futuro pela frente como vocês as duas, há muito tempo que eu perdi as oportunidades que vocês têm agora...
Acredito que o único erro grave que cometeram até este dia foi terem-me convidado a juntar-me a vocês esta noite... Mas vou contar-vos a minha história e depois vou dar-vos a oportunidade de me contarem as vossas.
Nasci em 1885 aqui nesta mesma cidade. O meu pai era um homem abastado e aos 26 anos eu era um jovem de 26 anos com tudo aquilo que alguém pode desejar. Estava envolvido nos negócios do meu pai, tinha os meios e sabia o que tinha que fazer para prosperar... Era noivo de uma mulher bela e encantadora... Estava apaixonado e feliz como eu penso que poucos homens alguma vez terão sido... Em resumo, eu tinha tudo.
Vivia um sonho cada dia... Até ao dia em que o sonho se tornou num pesadelo...
Para comemorarmos o nosso noivado eu e a minha noiva, a Isabela, fizemos uma viagem até Itália. Pelo caminho fomos visitando vários lugares dos mais belos da Europa e nesses dias o nosso amor floriu mais do que nunca... Começava a duvidar até se não estaria de passagem pelo paraíso... Que benção dos céus! (Ri-se) A sério, foi o que pensei... Na verdade o que me esperava era realmente o contrário... Sem saber caminhava alegremente para um verdadeiro inferno.
Chegámos a Itália e seguimos uma rota que nos faria visitar as suas mais famosas e exuberantes cidades... Cada dia novos lugares diferentes e incríveis... Mas foi numa terra triste e feia, entre uma cidade de onde vínhamos e outra para onde seguíamos que tudo mudou...
Nessa maldita noite ficamos numa pensão rasca que era a única para aquelas bandas, queríamos apenas dormir e seguir viagem na manhã do dia seguinte... Mas não conseguimos nem um minuto de sono e descanso.
No nosso quarto, à nossa volta, tudo parecia estranho e sinistro, havia ali uma agitação assustadora, os sons e os barulhos que se multiplicavam acompanhando as coisas que pareciam ter vontade própria... Depois... Vozes em sussurro e aqueles suspiros contra a parte de trás do nosso pescoço... Em momentos o quarto ganhou vida e apavorados, no meio daquele espectáculo de terror, estávamos nós...
De repente e sem qualquer motivo, tudo parou e ficou um silêncio de morte no quarto... E quando começávamos a acreditar que iríamos conseguir deixar aquela loucura... Enfim eu sinto-o... Subiu para cima de mim e enquanto eu lutava desesperado para me soltar ouvia na minha cabeça um riso louco... Abri os olhos em pânico e vi Isabela chorando muito enquanto se esforçava por me soltar do que quer que fosse que estava a possuir-me.
Senti o corpo a ser espancado... A sova era tão brutal que o meu medo me tomou por completo e eu senti-me a apagar... Acabava de desistir. Desmaiei e não voltaria mais o mesmo.
Sei que nos dias seguintes fui levado por Isabela e um casal amigo, que se juntou a nós nessa viagem, a várias pessoas que me consultavam e tentavam falar comigo... Mas eu estava perdido dentro de mim mesmo, debaixo de água e olhando para as figuras distorcidas cá em cima, sem conseguir respirar, um sufoco contínuo, sem fim... Ninguém parecia ser capaz de fazer alguma coisa por mim.
A maior parte do tempo nem sequer estava consciente mas a minha inconsciência atirava-me para esse pesadelo em que o próprio demónio se serviu do meu corpo como uma marioneta e fazia de mim o que queria... Rapidamente o meu corpo antes forte estava quase reduzido a um cadáver, abusado e mal tratado... Era eu próprio que me magoava e sentia a dor mais do que se fosse outra pessoa a fazer-me mal a mim.
Finalmente numa tentativa desesperada para me salvarem fui entregue a um grupo religioso de homens da igreja... Padres italianos e assistentes seus... Exorcizaram-me. Usaram todo um conjunto de lições católicas para tentarem libertar-me dele... Conseguiram acordar-me mas estava ali mais alguém, no meu corpo, na minha cabeça... Um demónio! Quando sentiu que podiam expulsá-lo não hesitou em fazer com que todas as minhas veias estoirassem cuspindo o sangue por todo o lado... Só pode ter sido um espectáculo incrivelmente aterrorizador... E eu estava morto.
(Pausa)
Mas voltei! Não tive direito ao descanso no céu. Continuava aqui em baixo junto com os mortais. Tinha morrido e só se vive uma vez mas por alguma razão que desconhecia voltei... E não estava sozinho. Era imortal e ele estava comigo, a toda a hora, falava comigo cá dentro, mostrava-me como devia olhar o mundo como eu nunca o tinha olhado e deu-me os meus dons negros cada um mais espantoso que o outro...
Mas o que eu queria era voltar e recuperar a minha vida... Iludido ainda tentei... Mas bastou-me encontrar novamente a Isabela e ler o que me diziam as lágrimas nos seus olhos para que o que restava da pessoa que eu fui morrer também e então eu cedi e foi assim que me tornei um vampiro, baptizado pelo sangue dela, Isabela... A minha amada e agora a primeira de muitas vítimas da minha sede de sangue.
De lá para cá não vos vou falar mais do Artur Nevelo o homem que um dia sonhou e foi feliz mas falo-vos de quem sou agora, um vampiro que é obrigado a estar aqui noite após noite pagando uma maldição injustificada, injusta... Vítimas, não é o que todos somos?
(Arranca a cruz do peito e atira-a ao chão)
A partir desse dia rejeitei qualquer remorso, lutei contra tudo o que me identificava com o homem que fui e dei toda a minha atenção à voz demoníaca que se fazia ouvir na minha cabeça... Com o passar do tempo abandonei qualquer sinal de humanidade dentro de mim para matar noite por noite... Queria vingar-me de Deus... Ele abandonou-me! Mas acho que a determinada altura consegui a sua atenção, ofendi-o... Então a voz na minha cabeça calou-se. Eu era um demónio e matar já não fazia sentido, não me dava gozo. A sede de sangue manteve-se mas o que eu procurava agora era saciar a minha raiva e ódio através do sofrimento das minhas vítimas, já não era tão importante matar como era causar sofrimento nas pessoas que tinham o azar de se cruzar comigo...
As minhas noites foram as últimas noites para muitas pessoas... Mas como um demónio eu estava prisioneiro de um comando que me obrigava a obedecer a impulsos maléficos restringidos e limitados por leis naturais que eu não compreendia...
Respondendo à pergunta que me fizeste sobre a felicidade... Eu já soube o que significa ser feliz, verdadeiramente feliz, e é por isso que agora eu penso que sou a coisa mais infeliz à face desta terra maldita, injusta... Cruel...
(Enquanto Artur fala e se movimenta de um lado para o outro as outras duas personagens estão atrás de si sentadas, muito discretas e sem expressarem emoções... Simplesmente vão bebendo vinho e quando não estão a beber têm as mãos sobre a cara e fixam com toda a atenção Artur... Podem entre cruzar olhares num jeito confidente mas devem estar bastante apagadas. Artur aparece aqui como alguém muito perturbado às vezes até demente, deslizando entre um tom bastante suave e um tom mais agressivo e colérico... Nos momentos em que está mais irritado é violento e atira as coisas – copo de vinho, cruz ao peito, casaco etc.)
LA. – Se não te importares gostava de ser eu a segui-lo...
CA. – Hum... Não, não me importo nada... Força.
LA. – Para mim não é tão fácil pegar em muitas peças e juntá-las... Acho que a minha vida é um puzzle bem pequeno mas acho que tenho tido medo de o montar... A imagem completa não pode ser nada a não ser feia e eu... Só quis que gostassem de mim. Sou muito honesta quando vos digo isto mas a verdade é que também sinto que o digo para pedir desculpa.
Queria tanto que gostassem de mim que para mim era irrelevante que eu gostasse ou não de alguém, realmente eu esforçava-me e essa... Pensem o que quiseres, mas acreditem que essa foi sempre a característica mais evidente da minha personalidade... Eu sempre dei tudo para que gostassem de mim, desde tão pequena...
Nunca houve razões naturais ou evidentes para que as pessoas gostassem de mim e acho que eu senti isso desde logo... Tive uma infância tão estranha... O meu pai separou-se da minha mãe... Huh... A verdade é que ele abandonou-a... O cretino! Trocou-a por uma parva qualquer.
Embora ele aparece-se de vez em quando para me ver e aquietar a sua consciência... Foi também a mim que ele abandonou... Mas foi a minha mãe que eu culpei, era ela que não o tinha conseguido agarrar , ela é que tinha a culpa. Apesar de ter ficado comigo o que eu dizia era que com quem eu queria ter ficado era com ele, a ele é que eu dava todas as minhas palavras doces, a ele que me tinha abandonado... À minha mãe eu não dei nada... A não ser ingratidão.
A minha mãe ficou comigo, estava ali e andava comigo para cima e para baixo, falava tanto comigo e abraçava-me e apertava-me contra o seu peito e mostrou-me um amor, afeição e dedicação como poucas filhas terão alguma vez recebido por parte das suas mães. Eu tornei-me a única razão para o dia-a-dia triste que aquela mulher tinha que suportar...
O seu dia-a-dia era triste e ela também... Apesar da dor que eu sentia-apor mim e por ela eu deixei-a afundar-se e chegava até a ter pena dela... Aquela mulher... Deslumbrante! Fora sempre a primeira em tudo, uma rapariga muito viva e que foi sempre tão feliz até ter conhecido o meu pai e ele a abandonar... Mas ela foi sempre a pessoa especial e ele reconhecia isso, sabia que ela era a mais inteligente, a mais bela, mais alegre até quando acumulava motivos para estar triste.
Eu não a reconheci... Não lhe dei nada... Mas aos idiotas dos meus colegas que olhavam para mim com desprezo dia após dia... A esses eu tentava dar tudo, tentava não ficar de lado nem para trás, tentava anular todos os motivos para ser gozada e achincalhada por eles, mas eles arranjavam sempre novos motivos... E eu era reduzida a menos que nada todos os dias.
Até aos professores eu queria impressionar e a esses consegui dar tudo o que podiam querer de mim... As melhores notas, a melhor aluna, sempre interessada, sempre tão esforçada... Eram para eles essas notas mas era também através dessas mesmas notas que eles pagavam o meu esforço e tudo o que eu queria era atenção... As notas não valiam nada para mim...
Dei tudo a um bando de idiotas. A todas as pessoas que não mereciam eu dei-me... Afinal quem idiota era eu.
À minha mãe não dava nada, chegava a tentar mostrar-lhe que não precisava dela ou que estava melhor sem ela... A única pessoa que foi capaz de dar toda a atenção que eu poderia desejar, uma atenção que poucas pessoas terão alguma vez tido a sorte de receber... Foi essa a única pessoa por quem eu não me esforcei, a quem eu chegava a desprezar quando ela me merecia tanto respeito, tanto amor...
Àqueles nojentos quanto dei de mim... Aos meus colegas na escola... Que idiotas, que raiva lhes tenho hoje, eram medíocres muitos deles mas tinham sempre como me humilhar... Nada os fazia pessoas boas ou melhores que eu mas desfaziam-me a cada dia... Eu ali feita estúpida a dar tudo o que tinha para os agradar... Vestia as modas ridículas que as miúdas mais populares vestiam, tentando ser sempre muito simpática e estar no meio... Fui sempre posta à margem.
Mas foi a minha mãe que eu obriguei a chorar as minhas lágrimas... Cheguei ao ponto de ajudar o meu pai em certas conversas que ele tinha em que dizia mal dela. Mas ele... O meu pai não valia nem nunca irá valer metade, nem metade nem nada quando for comparado a ela... Eu sei isso e ele também o sabe e foi porque se sentia pequeno, na sombra dela, que a atacou e se tentou convencer de que ela não valia tudo o que realmente valia... A minha mãe era boa demais para nós os dois. Nenhum de nós a merecia ou fez por merecer, mas o que me mata hoje é ter consciência de que eu podia ter feito por merecer o amor dela...
Só muito tarde comecei a ver a verdade, só quando ela se atirou sobre mim e não mais permitiu que eu lhe fugisse, então tive que a encara frente-a-frente, como agora, olhos nos olhos (foca o público com atenção especial durante alguns segundos)...
Esse dia chegou até mim para finalmente me obrigar a reconhecer que também eu era uma idiota...
(Entra aqui a música de piano do interview with the vampire)
Hoje estou capaz de o dizer como nunca disse... Querem a verdade sobre mim? Eu matei a minha mãe com a minha idiotice, matei-a...
A única pessoa que esteve realmente lá para mim... A minha mãe... Eu matei-a, esgotei-a até à última gota...
Dia após dia aquela mulher deslumbrante guardou e acumulou os maus tratos das pessoas que ela mais amava, a quem ela mais se dedicava... Foi tão generosa que não a soubemos valorizar, era demasiado amor... Sem reclamações, sem nunca pedir nada em troca, sem chamar a atenção para as suas próprias dificuldades e carências, a minha mãe acabou por ficar doente... Tão doente...
Eu vi tudo, até senti que aquilo estava a acontecer mas ela nunca deixou de ser a mãe que era até que não pode mais... Só quando perdi a minha mãe é que eu me decidi a fazer alguma coisa.
Há cinco anos a minha mãe teve uma crise depressiva que veio na sequência dos abalos e abusos que sofreu vindos de todo o lado... Essa crise atirou-a para a cama e só então é que eu comecei a despertar para o que estava a acontecer...
A loucura começou a cair sobre ela e no entanto os seus olhos ainda viviam e passeavam sobre mim, fixos como se tentasse continuar a dar-me o amor que sempre me deu... Mas eu estava a perdê-la... Ela piorava de dia para dia, cada vez mais débil... Deixou de falar e começou a precisar de ajuda para tudo, até para se alimentar e lavar...
Só então eu fiquei do lado dela, do lado da minha mãe... Oh mãe... Mãe...
Que droga (sufoca no choro)... Depois de tudo o que aconteceu... Como podia eu, logo eu, fazer-te o que fiz durante todo aquele tempo (diz isto fixando o chão, num murmúrio audível).
Esgotei-te até à última gota... Esgotei a minha mãe até ela se tornar um espectro do que fora. Neste momento e desde há quatro anos ela está internada... Os médicos dizem que está para breve... Não há nada dela que reste do que foi antes... Mas todos os dias a visito e durante aquela hora em que estou com ela e lhe digo algumas palavras parece-me que às vezes o seu olhar fixo ainda me diz que me ama... (Chora triste e abraça-se durante um momento)
Agora só resta um corpo inerte, uma memória que me recorda do mal que fiz... Do meu erro e de como estive enganada... Mas também a memória de um grande amor, um amor que enfim me fez ver a verdade.
Vivo para me tornar uma mulher como ela, vivo para tenatar mostrar o meu apreço, para pedir desculpa mas sobretudo para agradecer... Não a apreciei antes mas quero agora seguir o seu exemplo e dar a outros o que ela me deu a mim...
O tempo não volta para trás e o passado não muda, posso ter visto a verdade mas não deixo de pensar que faça eu o que fizer vou carregar a culpa pelo que fiz, e sei que mereço ser condenada... No fundo e por mais escondida que ela esteja dentro de mim, a verdade não me vai deixar esquecer que no fim fui eu quem matou a minha mãe e não posso nem quero salvar-me mas quero mostrar que se na altura não soube apreciá-la, hoje sei. Vivo para ela porque por mim não vale a pena... Não só a perdi como perdi todo o seu amor...
Mãe eu amo-te...
CA. – É estranho... Isto. Vocês falaram e agora é a minha vez e eu não sei... Não sei por onde começar... Ouvi-vos e pensava... Pensava no que estavam a dizer e em mim. E isto foi mesmo agora, mesmo agora...
E agora?
Realmente a verdade tomou o seu próprio caminho... Não estava preparada para o que ouvi, não esperava... Mas agora, talvez agora, me sinta disposta a deixar que as coisas sejam o que são, mesmo que isso levante problemas sem solução...
(Vai dizer alguma coisa, mas contém-se) Não sei... (suspiro longo)...
Acho que preciso tomar o meu tempo... Quero falar mas não sei por onde começar...
(Pausa longa e estranha/incómoda)
Vou lembrar-me desta noite...
Eu nasci e cresci aqui, nesta cidade... Á partida temos os três, desde logo, isso em comum... Mas e que mais?
A minha vida tem sido um verdadeiro mar de rosas... Não me sinto envergonhada não tenho medo de o dizer, nem posso lamentá-lo... Tanta gente se queixa do seu infortúnio e infelicidade... E eu nunca poderia juntar-me a esse clube...
As pessoas encontram-se ou esbarram umas nas outras e quase como um reflexo perguntam se está tudo bem... Com ou sem intenção, a resposta surge normalmente tão reflexivamente como a pergunta... Sim está tudo bem. Eu sinto-me obrigada a dizer sim... Obrigada não é a palavra correcta... Eu sinto-me compelida a dizer que sim.
Não sei a quem agradecer por tudo mas sinto que devo agradecer... O meu maior problema é o de escolher a quem...
Talvez eu não tenha nada a dizer, talvez as pessoas precisem das suas bocas apenas para reclamar... Tal como precisam delas para comer. Eu acho que preciso mais dela para agradecer...
Mas a quem?
Comigo está sempre tudo bem... Não é? De resto o que posso ter eu a dizer agora? Se calhar em vez de agradecer talvez devesse confessar... A mim sempre me pareceu que a verdade só pode ser dita em tom de confissão. Talvez porque admito que sei que o que disser neste momento pode ser esquecido noutro, talvez por isso, também sei agora que se sempre tive esta vontade de agradecer é porque sei que há quem pague o meu bem estar com lamentos...
Sim... Quem não paga as suas contas ou foge, ou deixa que os outros as paguem por si.
È interessante... Agora recordo um episódio... Um ex-namorado meu pediu-me, dias depois de eu lhe ter dito que não queria mais manter a nossa relação de namoro e que preferia que fossemos só amigos... Pediu-me que aceitasse um cd que ele tinha feito para mim e que o escutasse de uma só vez, do princípio ao fim.
Agora que recordo isto acho piada à frase – preferia que fossemos só amigos... Preferia que fossemos só amigos (sorri)... Só amigos, percebem a piada?... Bem, não me levem a mal... A frase não é minha, eu só a usei.
No princípio não percebi, no meio talvez me tenha assustado e lá para o fim voltei a não perceber...
A verdade para ser reconhecida obriga a que se perca o medo das suas consequências... As verdades são consequentes, as mentiras não... A não ser no que toca à própria negação da verdade...
O cd tinha a mesma música, gravada várias vezes... Ele pediu-me que o ouvi-se do princípio ao fim... E porque eu era sua amiga senti-me obrigada a fazer o que ele me pediu... Mas primeiro ainda lhe perguntei porquê, para quê? Ele disse que essa música me justificava aos seus olhos...
Então pus o cd a tocar... (Começa a tocar a música I can’t get no satisfaction e Cissa solta-se e canta ao som da música ao mesmo tempo que vai dançando... Depois o som da música começa a baixar e ela parece ficar um pouco constrangida e preocupada... toma uma atitude um mais séria)
O problema é igual para todos nós, mesmo os mais inteligentes... Este é um jogo em que temos que ganhar a nós mesmos... A nossa capacidade de reconhecer a verdade contra o desejo de acreditar na realidade que construímos para nós mesmos... Quanto mais inteligentes somos mais consistente e resistente é a realidade ficcional que criamos e mais difícil fica para nós vermos a verdade mas também estamos mais aptos a considerar diferentes aspectos e a reconhecermos falhas naquilo em que queremos acreditar...
Acho que entendo o que ele me quis dizer...
Nunca estou satisfeita mas estou sempre em movimento, mantenho-me interessada, apaixonada, movendo-me de plano para plano, procurando a excitação das situações novas e esquecendo o que perdeu a novidade... Mas não me dou por satisfeita.
Então é verdade... Alguém paga o preço da minha alegria e entusiasmo...
Talvez eu minta sempre que agradeço porque a verdade é que sempre que agradeço é também chegada a altura de me mover, de deixar esse momento e encontrar um novo... E quando eu tomo por agradecimento o sentido das minhas palavras... sinto-me agora compelida a reconhecer que afinal o meu agradecimento esconde um pedido de desculpa porque sempre que sigo em frente deixo algo ou alguém para trás...
Agora posso perguntar a mim mesma quantos planos de outras pessoas eu já frustrei... Sei que gostam muito de mim e sei que contam comigo quando sonham... Mas quando acordam eu já lá não estou... Já fui e tudo o que deixei foi um bilhete, um simples bilhete dizendo – Foi óptimo, obrigada.
Obrigada... Sou obrigada a reconhecer que tenho sido egoísta e cruel... Ou talvez a verdade seja ainda pior, talvez eu não possa deixar de ser como sou simplesmente porque tal como não me apego às coisas e às pessoas, os sentimentos também não se apegam a mim... Se por um lado a minha vida está cheia, por outro, agora e aqui convosco, esta noite, sou obrigada a reconhecer que por dentro estou vazia... Sou imutável e desinteressante na mais verdadeira acepção destas palavras...
Talvez a verdade seja efémera, tão efémera como a vida... Ou pelo menos a verdade é efémera enquanto estamos vivos... Mas todos morremos um dia e na morte as coisas são definitivas... Á medida que a vida se esgota não podemos continuar a esconder a verdade segundo a conveniência do que nos apetece, somos obrigados a reconhecê-la e a aguentá-la... Um dia quem sabe... Mas não agora, não hoje... Eu ainda sou muito nova para morrer. (Artur aproxima-se sem que Cissa se aperceba e coloca-se atrás dela, muito próximo e deixa-se ficar aí até ao fim)
Depois desta noite não sei se voltarei a dizer a mim mesma mais alguma coisa mas por agora é claro que esta noite se falou a verdade e só quem aqui está e nos ouviu poderá sujeitar-nos à sua consequência.
(Pausa. Começa a tocar a última música – Casa dos Da Weasel)
Esta noite sentámo-nos à mesa com um vampiro...
Levantámo-nos e agora sabemos que afinal somos três.
AN. – Boa noite. (Artur pega Cissa pela mão e despede-se do público saindo de cena e deixando Luísa para trás... A música continua, Luísa está de novo sentada e esteve sempre a olhar para baixo agora levanta a face e encara o público durante alguns segundos com uma expressão dura... Black out e a música contínua)
FIM